05/11/2010

Os olhos queimam Lucienne Samôr

Os olhos queimam Lucienne Samôr [1]

Para A. Marti que conta histórias

Estou brincando há muito tempo
 de inventar, e sou a mais bela
invenção que conheço.

Maura Lopes Cançado[2]

As confissões veem como tábuas pregadas nos olhos, quando necessitamos do prego para o pé altíssimo de uma varanda retiramos esse arpão da madeira, e assim, no olho desta, o olho perfurado vaza endereços que só o rosto guarda, como um líquido que gera o estorvo, pois não tem gomo que o retém.  
Os olhos queimam os olhos de Lucienne Samôr. O seu O olho insano [3] me foi enviado num embrulho de papel vermelho, abri como se acendesse o mar pelas algas, como panos incendiados. Cheirei esse livro de contos pensando que cheirava os dois punhos de cabelos que caiam e caem sobre os ombros dessa escritora mineira. Ela de um só livro. Ela que teve fogo em casa, pertences perdidos, as labaredas em frente aos olhos, sua correspondência, em boa parte, extraviada, cartas que poderiam contar parte da intensa produção literária e biográfica da Literatura Brasileira dos anos 60 e 70. Perlo Monteiro[4], amigo de Samôr, guardou consigo um dos poucos exemplares que a escritora tinha de O olho insano e que recebi dele anos atrás banhado de vermelho, e quando lembro hoje tenho a certeza da pele queimando, não era um papel que revestia o livro. A minha correspondência com Perlo, amigo de Lucienne, data do começo da procura que tive pelas edições raras do Suplemento Literário de Minas Gerais (veículo literário propulsor de vários escritores nos anos 60 e 70), os quais os dois amigos tiveram grande participação, embora com maior adesão de Lucienne.
Lucienne Samôr e Maura Lopes Cançado foram e são minhas incógnitas do inacabado, ou seja, aquelas que existem e continuam no fechamento de um livro, mas as questões relativas à Samôr sempre me despontaram para os guias do outro mundo, guias rendados de barbatanas, de modo que tentar os seus nós é coser para dentro, costurar os olhos que no fundo aguardam o fogo. Perlo sempre se recusou a me escrever linhas confiáveis, quando eu tentava a lavra muito abaixo da terra, com o efeito de remover raízes, ele, então, esquivava-se, e não me respondia se Lucienne Samôr  está ou estava viva, por exemplo. Em suas cartas, ainda datilografadas, Perlo, transcreve uma que outra fala de Samôr como se ela lesse e respondesse a carta que eu enviara.
Entre as folhas de O olho insano havia uma foto de Samôr. Guardo essa foto como um bordado que só é possível bordar descosturando. A foto de Lucienne Samôr está no meu quarto como uma chama que queima o rosto, mas nunca avisa os olhos. Vendo a foto percebi que esta é incrivelmente igual ao quadro A vidente[5] de Gustave Coubert[6], cuja provável modelo é Juliette Coubert. Nunca escrevi comentando a semelhança entre o quadro e a fotografia, pois não era de meu interesse espelhar uma imagem que durante alguns anos tem sido uma implosão de imagens para mim.
Havia mais ou menos um ano que não nos correspondíamos, mas no início de fevereiro, deste ano, recebi uma carta de Perlo e Lucienne, assim mesmo, com os dois nomes no remetente. Abri a carta para encontrar um texto assinado pela escritora mineira, intitulado Os Coubert – os olhos queimam. Duas páginas e meia de um belo texto narrado por Juliette Coubert como personagem. Esta amarra e revela o contexto íntimo de Gustave Coubert. No mesmo dia escrevi para Perlo e Lucienne, imaginando que os dois, juntos, improvisando o tempo, trocando as mãos, abrirão a carta, resvalando os dedos na mão do outro. Escrevi sobre a semelhança de Juliette e Samôr, o quanto isso me inquietava. Antes que os meus olhos queimem vendo a possibilidade de predominar na carta-resposta o nome de Samôr, obliterando o nome de Perlo, espero a possível resposta da escritora como algo assim: nunca tive rosto, sempre olhei com olhos queimados.



[1] Escritora mineira, natural de Conselheiro Lafaiate, autora do livro de contos O olho insano.
[2] Escritora mineira de São Gonçalo do Abaeté – viveu parte de sua vida em sanatórios, e sobre isso escreveu. Tem dois livros publicados: O hospício é Deus (1965) e Sofredor do ver (1968).
[3] Livro de contos publicado em 1975 pela editora Entrelivros.
[4] Perlo Monteiro é o pseudônimo do escritor que participou do Suplemento Literário de Minas Gerais. Perlo não me revelou seu verdadeiro nome, mas me enviou dois exemplares do Suplemento, nos quais assina com o seu pseudônimo, embora não tenho como confirmar a veracidade dessa identidade.
[5] Esse retrato também é conhecido como A sonâmbula.
[6] Pintor do Romantismo Francês.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei muito do seu texto.Quero muito ler o livro da Luciene Sâmor. Como faço para conprar um exemplar, mesmo em pdf? Obrigado.