Estou diante de uma alcateia de moléculas que ladram minhas
veias. A clínica é um tratamento
musical quando ouço dentro de mim a orquestra dos meus avisos. A ideia que
tenho do corpo é testada pela escuridão dos quartos que entro sem saber a quem
devo negociar a chave. Entro e saio dos lugares sem ver a chave, sem saber como
acessar novamente aquela porta, a luz que vaga amarelada nas paredes. Como
reter o sorriso da aeromoça no perímetro da cama? Quando fechei os olhos, senti
a chave esquecida em alguma porta; o clamor da solidão, a fresta inaugural e os nomes de criança no castelo do corpo humano. “Isso funciona para procriar”,
disse a professora, enquanto eu não via o seu rosto e nem a sua língua que ora se
sobressaia entre os lábios para pronunciar a liberdade do corpo. Só na
escuridão de outro corpo, anos depois que fui sentir a predestinação que havia
na minha natureza. Os poros lubrificados ainda escutavam a professora. Seu
rosto apareceu como uma clarividência para mim. De repente minhas mãos sabiam
se guiar através dos cheiros, dos pelos e dos gemidos. E uma luz maior derruiu
as janelas dos olhos. Pude ver as saliências de tudo que visita o corpo. A liberdade
estava ali, detida porque eu tinha um corpo, tocável de sentidos porque eu
tinha uma carne. Naquela noite era habitável a carne e sua manifestação de
energias luminosas e líquidas. Os leitos sentiram o encantamento de todas as
águas. Era possível acessar a matéria carnosa da fruta antes e depois das
aulas, antes e depois das idades que fabricam nossas memórias. Eu falava
“quando tinha tal idade” ou “quando o corpo veio me visitar pela primeira” ou
“quando um beijo tocou minha despedida”. Eu falava em termos de “quando isso”
ou “quando aquilo”. Eram formas de dizer sobre a nudez do tempo em que estive
desancorado, o cabelo lavado de suor, sem vontade de voltar para casa e acessar
a angústia de não encontrar a chave do mundo. Havia uma criança nas mãos que
tocam os volumes desorientados da memória. Eu vasculhava entre os dedos os cheiros
que me recompunham. Levantava a altura da voz para avizinhar aos bichos a
gravidade de se ter um corpo. Nunca mais voltaria a habitar a carne sem o gemido
sóbrio de que está em desequilíbrio, pois havia descoberto que o lado direito e o esquerdo são duas montanhas em que o sol deflora primeiro uma e depois a
outra. Nessa época, escutava o aviso do
trem como se fosse um caroço nas costas. Enquanto tentava ensurdecer o atrito
dos trilhos na quinta vértebra minhas mãos percebiam o quanto eram cegas de
mim. Fechava os olhos e imaginava um túnel de pedras robustas e vegetação
montanhosa. Era ali dentro que o trem ficaria inteiramente surdo por segundos.
Uma parte de mim era prazer silencioso, a outra corria para desmoronar a ponta
do túnel. Eu corria em cima do túnel, em cima do trem. Eu poderia parar no meio
do caminho e deixar o volume do ar arder as narinas, sentir o fôlego desmaiar,
a tosse convulsa, a boca seca e um leve sorriso atrás da calda do trem que
longe desaparecia. Era mais obvio que eu parasse, nunca alcançaria o trem. O
trem desaparecendo no horizonte deixaria solidão. Aquele acesso de ar maquinando
nas narinas talvez indicasse o segundo em que a vida acontece de modo tão
imanente que não havia um “eu penso sobre o que está acontecendo”. O corpo
estava na surpresa de se esquecer. “Eu me esqueci, pois estava pleno de
presença”. O trem não era um aviso dentro de um caroço nas costas, mas um
descarrilamento molecular dos pés sobre a terra. O ruído da locomotiva que
latejava o interior do corpo havia escapado seus estertores. Alguma plenitude
começava sobre o orvalho tocante da pele.
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