02/09/2011

Uma despersonalização dramática segundo Alberto Caeiro e Alfredo Rodrigues

“Nunca fui senão uma criança que brincava”.
Alberto Caeiro

Estou levemente curvado numa cadeira, posto na vida como um lampião que cumpre seu papel porque há uma escuridão no final do dia sempre que o sol pestaneja seu desfecho. Pois estou eu cá, se estive aí, que diferença faria? Que sabe você de onde sou? Porque me lês sabes de minha língua? Poderia eu agora estar num fogo cruzado, mas estou bem confortável, num quarto, que importa aqui se eu escorregasse e dissesse que ontem estive em Lisboa, que valeria isso para você? Ora, apenas que fui num lugar como outro qualquer. Que ideia tem você do que escrevo se o que vês são riscos chamados de palavra? Que palavra basta para parar alguém quando temos todas as ilhas do mundo para conhecer?

Meu avô deixou Portugal em 1926. Fernando Pessoa ainda estaria vivo por nove anos. Alberto Caeiro morreu em 1915. A primeira vez que escutei Caeiro foi sem saber que um dia ele existiu, nem ao menos seu nome poderia me dizer alguma coisa, mas meu avô sentava e falava com o porte e existência de Caeiro. Só hoje vejo isso. E vejo porque é real. E você lê essas palavras que levam para outras dentro de uma lógica que está dentro da sintaxe que está dentro de você e alguma coisa faz algum sentido. É preciso largar a palavra, aqui nada tem de real, nem precisa ter, oras, eu é que preciso da realidade, por isso ponho esse chapéu de meu avô que me ficou de herança e que você não está vendo e por não estar vendo ficas lá com os chapéus de tua memória. Vá, então, pegue seu chapéu e pegue também o seu avô, se é possível ter posse de alguma coisa. E se eu pensasse nisso tudo, ao invés de escrever como faço? Seria melhor que escrever. Ninguém saberia e nem eu ficaria na expectativa de que digam algo dessas palavras, nem ficaria agora pressupondo meus leitores. Quantas coisas escrevo aqui, não porque quero, mas porque há uns pontos no deserto. Esse chapéu de meu avô me serve tão bem. E esse casaco, melhor ainda. Acho que era assim que ele andava. Sim, ele arrastava as chinelas. Falava uns assobios, uns silêncios, de repente no meio da palavra uma sílaba era ouvida, acho que ele respeitava a métrica da fala. Fico aqui pronunciando seus sons, impossível para as palavras. Não lembro nenhuma palavra de meu avô, não consigo forjar uma que seja, apenas um som apertado que de repente vaza, como um sopro, um susto.
E aquela história que meu avô disse, que um senhor chamado Fernando Pessoa esteve hospedado por uns meses defronte do seu quarto numa pensão em Lisboa antes de meu avô vir para o Brasil? Disse ele, “mas havia tantos Fernandos em Portugal, mas aquele era um Pessoa, esse fato nunca esqueci, ora, por que não esqueci? Ora, não porque pensava que aquele poderia ser o nosso supra Camões, pois nem os heterônimos o viam como poeta, então, e era eu que veria? Bem, aquele homem vem na minha lembrança pela simples circunstância de querer apontar em mim um nome, pois sim, veio ele a me chamar de Caeiro, disse eu, estais louco homem, parto para o Brasil em breve e nem por isso ei de mudar de nome, saio de Portugal e entro no Brasil me chamando Alfredo”.  O homem insistia: “Alberto? Alberto Caeiro?” Meu avô sentencia: “Não sou nem conheço”. Uma voz interrompe. O senhor é de Lisboa? Mas quem pergunta agora? Espera um pouco. Estou falando com quem? Vamos fazer assim, cada qual põe o seu nome em evidência para os outros e vamos ter uma conclusão disso. Você quem é? Eu, Gabriel. E você? Alfredo, seu avô, que está na cadeira de balanço em Rio Grande enquanto você está a folhear um livro de biografias portuguesas, sem saber que o faz, pois ainda és uma criança, que um dia inventarás que sou parecido com o Fernando Pessoa, e realmente sou, mais pelo bigode do que pela a poesia, e depois, mais precisamente dirás que sou a ressureição de Caeiro, talvez porque me viu vendo a vida, seja no quintal, seja na cadeira, seja arrastando os pés, seja dormindo, seja subindo no telhado para não sei o que, nem eu mesmo sei o que fazia naquele teto. E agora você está vestido como eu. Anda como eu. Que falta agora? Gabriel, se eu estivesse agora vivo e de pé para me mexer pelas pernas, iria atrás de um mapa que há naquela gaveta a tua esquerda e pegaria o mapa de Portugal que te dei de presente nos teus últimos anos em Rio Grande. Abriria esse mapa, como o faz agora, e apontaria a aldeia que nasci, Falgarosa, no Concelho de Águeda, em Aveiro, depois faria um círculo ao redor da aldeia para não ter que procurar novamente, poria o mapa debaixo do braço e sairia pela rua Silva Jardim, agora mesmo, dentro dessa noite avessa à lampiões, e iria parar dentro de um quarto de pensão como se estivesse a chegar num quarto de pensão em Falgarosa, sentar-me-ia diante de mim, em cima de uma cama e pediria para mim uma garrafa de vinho do Porto e tomaria comigo, que é você também, ambos sentindo o gosto do Tejo, e eu não precisaria, Gabriel, dizer como é o cheiro do Tejo, porque basta estar onde estás para sentir, Gabriel, já estamos por demais embriagados, agora podes me chamar de Caeiro, deixo esse nome habitar em mim como um dia um tal Fernando, que não era o Pessoa, é lógico, embora por ordem cronológica e espacial poderia ser, que fique claro, disse que eu era o heterônimo pessoano. Então disseram mesmo? Mas vá Gabriel, cá eu lá atravessei o oceano para mentir? Sim, já me chamaram de Caeiro, agora é a sua vez, não perca tempo, que todo o vinho tem a sua última gota.

2 comentários:

Wilson Torres Nanini disse...

Gabriel,

a história que crava na pele de nosso avesso é mais forte que a documentada em páginas.

Caeiro lhe é um velador dos bons dizeres.

Abraços!

Gabriel Santos de Araújo disse...

Também acho que há narrativas da pele que pouco as palavras podem fazer por ela... tem nesse escrito uma provocação em relação a isso, como podes ver.

É estranho, tenho me aproximado da poesia do Caeiro, pois meu avô tinha um ritmo de vida caeiriano... E tento aproximá-los, mas esse texto tem um ritmo mais próximo do Álvaro de Campos...

Caeiro nunca me pareceu um poeta, ele já existia...

Abraço!