06/12/2010

Dentro do amanhecer

“Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
de crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.”

Cecília Meireles

Às vezes, toda a minha infância cabe num balde de areia numa beira de praia. Sempre tentei golpear a manhã, de modo a trazer no balde um castelo pronto, mas na hora de colocá-lo na areia, não havia jeito, e as pilhas de areias perdiam seus desenhos, eu destruía o castelo no ar, exatamente quando virava o balde, então comecei a deixar o castelo intacto dentro do balde, de modo que só eu via o castelo, pois nenhuma criança desconfiava que eu trazia um castelo dentro do aperto do balde, depois eu corria para o mar e mergulhava o balde e ria do rei e da rainha abraçados em alto mar, correndo para o reino das algas.
Hoje tenho várias areias desprendidas nas solas do sapato, são grãos quadrados, parecem com sofás quando caio sobre eles, mas esse não é o mesmo cair da praia, é um cair para não pisar na formiga embriagada pelos meus bolsos com várias balas mortas, estufados de um açúcar que a pele muito solta para chamar o beija-flor, mas ultimamente apenas as libélulas vem beber da minha língua um riozinho cuspido de nariz, ou vem deitar no tomate que dorme na minha orelha e todo grito é um estouro vermelho que respinga nas hortaliças as manchas de um álcool que praguejo na pele toda a vez que um bando de grãos de areia roçam meus poros e trazem seus barcos que afoguei dentro do castelo dentro do balde dentro do mar dentro da concha da minha mão que dói toda a vez que soco o chão para que a areia pare de crescer em volta dos meus passos e pare de crescer esse castelo que teima em não morrer entre as águas, pois tenho exagero de sede e bebo desse balde até a língua inchar e naufragar dentro da minha boca a velocidade de um beijo que irá roubar a pérola entre os lábios da ostra, depois faço um sumidouro entre meus pelos e esqueço de pedir a mão da princesa para o rei, pois nunca gritei princesas, sempre recortei com as unhas as várias mulheres na areia, e não sei se desenhei areias de mulheres ou mulheres de areias, e toda a vez que termino uma dessas obras, mesmo com 29 anos, ainda sinto o balde de areia roçando a minha perna esquerda enquanto vou embora e levo junto meu corpo de areia que nunca termino, pois sempre o componho a beira do mar, sempre busco o erro da criança que quer fazer cidades debaixo de uma torneira aberta, resmungando tufões no rosto do sol que irá queimar esse barro todo em estátuas e mais tarde irei apontar na dureza dessas estátuas vários  nomes resmungados e parafusos que nunca apertam, parafusos que penso, sim, são de madeira, como meus ossos.

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