“Pergunta pra
ela como são as águas de lá.”
um caroneiro em
Florianópolis
A
última expressão do seu rosto demorou mais que o choro da criança sentada no
banco de trás do carro.
Mesmo
durante o choro a frase “parece que estamos sempre derrapando dentro da ilha”
me soou limpa. Ela parou a criança com a barriga para cima, como se fosse
seguro largar um bebê no banco do carro, e desceu caminhando no acostamento em
direção ao bar. Eu e ele ficamos olhando o bebê, como se ele pudesse começar o
choro a qualquer momento.
Depois
do carro parar, lembro dela se afastando
para bater na porta do bar, que só percebi que não era uma casa com seus
moradores acobertados por uma TV num lugar longínquo, quando vi as garrafas por
cima do seu ombro, e foi ali que a desejei, longe da criança. Pensei em
segui-la, pedir uma cachaça para lavar a sede antes que a garganta não toque
mais a melodia. Então ele disse: “vou me separar dela”.
Ela
parecia uma menina pedindo uma garrafa barata, levantando a alça da blusa,
despregando a cor morena que a roupa deixa. Logo a chuva deixaria marcas no
vidro, horas de sons no para-brisa. Ele dirá que a ilha penetrou na sua cabeça
como um volume movediço e olhará ao longe como se visse o mar logo adiante,
preso nos olhos. A porta do bar me chamava, feito um veleiro à deriva. Quietas,
as portas, já disseram tudo. Soltei uma tosse desafinada para dentro da
quietude, dentro do calor que arde no painel do carro. O bebê acordou e trouxe
a cachaça do choro. Enquanto ele cuida da voz estridente da criança, saio para
dentro do bar.
Entrei
sem palavras para entrar, sentei no balcão como quem apenas retorna do
banheiro. O velho do bar mostrava uma tatuagem gigantesca que ele mesmo havia
desenhado e que ela cheirava como se o traço fosse fresco. Mal a vi por entre a lâmina do copo. Ela
estava envolvida por um mapa, eles apontavam para cidades riscadas com a ponta
das unhas, desalinhando a geografia, desmarcando morros com os cotovelos. O som
da criança movia as fronteiras, as linhas de um eletrocardiograma. O velho
olhava para a porta, esperava que o choro fosse entrar. Eu bebia e não lembrava
quando me serviram a dose, nem sei a quem disse “obrigado” a um segundo atrás.
De repente, são os buracos, que guardam uma gramática da gagueira, estalaquitites
que prendem os pingos no tempo.
Ela
tocava nas cidades tatuadas do velho e sem esperar a maré caminhava pelas
conchas carunchadas, peneiras que a água abandona para o convívio das teias, o
forte dos aracnídeos. O choro é um abandono da água. O velho mexia no pau,
batia nas coxas como um atleta que tenta vencer o próprio corpo, mas se perde
na meada dos tendões, arranha a pele, mas o pau fica deitado ao redor da
concha, sem amanhecer a haste que corta as águas. Sem o corpo, ele tenta voltar
ao mapa, mostrar a ilha que ele trepou com várias mulheres, das ervas que
mascou no ar, do seu pau como uma raiz, do esperma sumindo na terra. Mas ela já
havia amassado o mapa e de pé, coçando a buceta levemente com a pressão das
coxas, pergunta: “como saio dessa ilha?” O velho tentou agarrá-la. Tive vontade
de espancá-lo, mas eu queria ver até onde iria o descaminho dela. Ouvia o choro
aumentar. Da janela vi seu marido pedindo carona, ele era um tufo de cabelos
que abandonavam o corpo, logo seria um pequeno volume de feno a se estribilhar
no vento, uma caipora fora de si, uma Medéia que venta longe o leite dos
filhos.
Ela
levou um tapa do velho que caiu sobre ela que ria mais que o choro já
envelhecido no tempo. Quebrei a garrafa quando ele entrou no caminhão, cortei o
vento com a lâmina da embriaguez, mas eles eram vultos, já estavam lá fora,
debaixo da sesta do sol. Ela entrou no carro, suas mãos suavam na direção.
Voltou ao bar e me pediu para tirá-la da ilha. O velho veio junto, também
queria sair da ilha. Eu era recém chegado e não sabia como proceder diante de
tanto desejo de êxodo. A criança tinha olhos de quem não se importava com
aquilo, podia ser abandonada no mar que só choraria quando uma urticaria lhe
acometesse a pele. O velho se coçava entre as coxas, assegurava o pau mole,
como um guerreiro vencido, mas que não abandona as armas, as medalhas.
Quando
o morro terminou o carro só podia voltar. E digo assim “o carro parou”, porque
era como se eu não estivesse fazendo parte daquilo. Eu não tinha dito para
aquele carro parar diante desse cara que agora ela conversa. Às vezes ela coça
a buceta, de modo muito sutil e rápido, de repente só eu perceba, é um tique,
ela acabou de coçar, pode ser um pelo encravado. Tenho vontade de baixar suas
calcinhas e ver onde está a coceira, tenho mais vontade disso do que sair da
ilha. Mas isso passa, logo a água abandona o ouvido e volto a escutar o gorjeio
do mar. O cara aponta para lá, e lá é um lugar que não vejo. Deduzo que
seguiremos para lá. A estrada, cada vez mais afina, parece um rabo de cobra
esticado no sol, que abruptamente troca de pele e ficamos em cima da epiderme,
enquanto a cobra escapa pelos buracos da terra, ou da cabeça. Vejo uma cobra
parada no pneu do carro, faz movimentos sinuosos, um despertar de escamas, como
um fogo que inicia sobressaltado e aproxima as mãos entorno, como servos. O
cara faz gestos negativos. Ela entra no carro, como um capitão que acorda em
meio a uma tempestade. Acho que não é a estrada que afina, mas a areia que come
as beiradas. Ela diz que o cara também quer sair da ilha, mas não quer vir
conosco, diz que por aqui é pior, no Cantão (canto da ilha) mataram todos os
membros de um partido de oposição. O cara zuniu dali, mastigava as palavras com
rapidez, e de costas desgovernava a língua. “Faz tempim, mas o lugar é horríveo!
Levarum todins de carro pra lá, diziam que era uma festa, fuzilaram todins e
cantarum o hino da ilha”. Ele descreveu
onde foi. Ela quer ver, acha que pode estar lá, não sei, alguma coisa, que os
olhos não viram ou o corpo ainda não se entregou, de repente um estreito de
terra que nos devolva ao Brasil, um trecho de terra assegurado por uma arapuca
de ossos, onde seja seguro pisar, não afundável. Um lugar onde os mortos sejam
grandes, de omoplata e fêmur anormais, maiores que os buracos que a terra abre para
abrigá-los.
Há
pouco o asfalto sucumbiu, as rodas queimam na areia. O velho chora, nem
lembrava que ele estava no carro. Sinto a primeira roda parar, a areia engole,
tudo para. O velho imita as caretas da criança. Eles são a ilha, pensa ela. O
choro e a velhice juntos. Uma criança também é velha. Ambos têm as partes aos
pedaços, os cabelos ralos e dependem de mim. São capazes de pisarem toda a
extensão da minha pele, como se eu fosse o próprio chão, uma estrada. Os pezinhos
recém nascidos, entrando nos buracos do meu crânio, gelatinando meus músculos.
Estamos
caminhando há horas. Não sei dizer o que aconteceu com a criança, mal vejo o
velho que ficou para trás. Vejo-o como vejo um ponto perdido entre pontos
perdidos. Ela vai logo adiante, está menos destemida, olha com regularidade
para mim, parece esperar que minha voz limpe a poeira dos lábios, mova algum
barulho e diga “deu, vamos voltar”. Mas não digo nada, estou disposto a ir mais
do que podem minhas pernas. Há pouco ela teve um ataque de fúria, espancou o
velho, desfigurou sua tatuagem – ainda estávamos no carro, por um bom tempo
esquecemos o choro da criança, o grito de dor do velho era maior. Quando as
areias tomaram conta da estrada ela falou qualquer coisa sobre a criança, mas
eu e o velho estávamos mais preocupados em esconder o carro entre umas
caiporas, não sei por que, foi um gesto iniciado pelo velho, empurramos, vi as
veias dele estourando na testa pelo esforço excessivo, faltava sangue para
compor as lacunas da cavidade, as veias pareciam uma mangueira depois de aguado
o jardim, as gotas d’água isoladas, desérticas. Estávamos a poucos passos do
Cantão da ilha. Eu não conseguia compreender (até chegar lá) porque ela queria
ir para um lugar onde executaram políticos da oposição. Quando chegamos notei
que a areia era grossa e dura, não seríamos engolidos, a terra estava bem
alimentada, a morte estendia seus músculos como raízes. Era um lugar sólido.
Entendi que ela queria sentir como era um lugar que fora devastado, que as
vidas foram tombadas. A cada metro tínhamos a sensação de um corpo anoitecendo
no chão, ouvíamos o barulho do tombo, as armas recarregando. Chegamos ao ponto
que não se volta, chegamos a terra bem alimentada, corpo curtindo o bronze
debaixo da terra. Era o vácuo, ela queria o desabitado. Eu sentia o cansaço bom
do corpo e estava cada vez com menos roupa no corpo. Toda a vez que eu olhava
para trás, ouvia o choro e via o velho andando de um lado para outro,
procurando algo, talvez o carro, para voltar. As caiporas tremiam, como se dois
javalis trepassem. Mais tarde ele me perguntou “onde está o carro?” Ele morreu
sem que eu pudesse lhe dizer “não sei”. Só percebi que eu voltara a olhar para
o horizonte quando vi ao longe a lataria do carro, brilhava. Era muito longe
para qualquer movimento.
Ela
estava perto agora. Percebi quando tentei levantar e seus cabelos se prenderam
na minha roupa, deixei o corpo quieto enquanto ela aquietava a cabeça numa
pedra. Aos poucos, como se eu entrasse no seu sonho, fui lhe tirando a roupa
empapada de suor, tirava e secava, era muita roupa para tanto calor, eu tirava
e ela dizia “em breve fará frio”. Desprenderam-se do corpo a blusa, os terrenos
de areia entre os pelos, os cobertores de silêncio nos olhos, o calçado morto
às milhas, um mapa de nomes para o esquecimento....
Derrubei
a garrafa d’água no chão. Rimos. Ela perguntou pela criança. “Caiu com a água” -
falei sabendo da bobagem que é falar quando é impossível palavras. Ela caiu
sobre mim, como um bloco de areia, ela era um bloco de areia dourada que ia se
pregando no meu corpo, seus grãos eram cubos de gelo anestesiando poros,
estrangulando a possibilidade dos muros rebentarem, desbraçando os mares da
mão, me jogando no moinho movido a desertos, peso feito de um volume importátil
de criança, velho, carro, mapas, ilhas... Um bloco de dunas... Entrei no sono e
acordamos com os lábios trêmulos, a pele batida pelas picadas dos mosquitos.
A
buzina do carro latia seu cheiro de cão sem dono. Os faróis entraram na cortina
da madrugada, moviam nossos olhos para dentro. Levantamos e tivemos a sensação
de que ouvíamos a buzina a um bom tempo. Se a madrugada já era cega, os faróis
pioraram as lágrimas dos olhos. Não víamos quem estava dentro do carro. Fomos
andando em direção ao carro, como se desistíssemos de tudo ao simples abrir das
portas, e o convite para entrar estivesse estancado nos nossos olhos, assim, de
repente, interceptaríamos nosso próprio desejo e diríamos “seguir para longe,
muito longe”. O tempo fazia vírgulas na noite, parávamos bruscamente diante dos
faróis, sem saber se a luz se aproximava ou se afastava, parecíamos dentro de
um trânsito, ao meio dia da madrugada. O carro se movia, um pêndulo, uma
gangorra. Sentia-me tonto, meus olhos se moviam como uma jangada, depois meu
corpo trepidava, depois percebia que era o carro a gangorra, devia estar com os
pneus metidos dentro da areia, onde tudo não para onde estava. A ferrugem da
ilha é a terra, não o mar – disse ela – inebriada pela luz, zonza. Estávamos mais
perto da luz que não se movia. Andávamos ao redor da ilha, éramos a água nas
beiradas, mas uma água ainda doce, sem tubarões no sangue.
Nossos
passos demoraram o tempo da madrugada. Os faróis e o que havia por trás ainda estavam
longe demais para alcançarmos o suficiente para ver a olho nu. Descansados, não
parávamos de andar, como dois bichos caídos por um par de ossos. Só
conseguíamos ver o que a luz esclarecia atrás de nós, e o que víamos mais
nitidamente eram nossas pegadas que aos poucos foram sendo apagadas pela espuma
do mar, alagadas como pequenas ilhas na areia. Nossos pés beberam a água e as
primeiras ondas nos mergulharam, embaçando a luz dos faróis que refletiam nos
olhos e que agora podíamos ver. Era uma embarcação parada na costa que iluminava
as saídas indicadas dentro dos nossos olhos. Os olhos da tripulação se uniram
aos olhos da luz que piscava seu gesto de acolhida. Eles gritavam mais do que a
força que tínhamos. Sem falar nada ela deixou as pedras do corpo colidirem no
mar e mergulhou na onda que jogou contra mim um vestidinho branco. Gritei por
dentro quando vi a criança boiando morta no mar, era como se ela tivesse
despregado o filho dos corais. Um rebento do mar espancado pelo choro das
chuvas. Ela sumiu em direção à luz, enquanto eu sentia nos braços o peso da
pequena roupa molhada.
Florianópolis
– SC. Verão de 2012
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